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27 de Julho de 2024
Depois de uma noite dormida no centro de Istambul com o Bósforo pendurado na janela, chegamos ao parque do sultão Ahmed. Estamos na península histórica. Vemos de um lado a Mesquita Azul, do outro, Santa Sofia. Junto a ela, Topkapi, o palácio oficial do imperador romano. Dentro do Palácio de Topkapi — “porta do canhão”, em português — cabe um mundo. São necessários quase dois dias para conhecer tudo. Fez-se museu em 1924, um ano depois da instauração da república na Turquia, para expor as colecções do Império Otomano. Durante quase quatro séculos, trinta sultões governaram o Império Otomano a partir deste palácio. O primeiro foi Mehmed II, que mandou construir Topkapi depois de ter conquistado Constantinopla. Da torre da justiça ao harém, passando pelo diamante kasikci, de 86 mil quilates, os tesouros neste complexo são mais que muitos. É sexta-feira, dia sagrado para os muçulmanos. Jummah, a oração de sexta-feira, é obrigatória para todos os homens muçulmanos, que se reúnem nas mesquitas para rezar. Enquanto vemos encolher a fila para entrar em Santa Sofia, Bekir conta-nos que as mesquitas são lugares de partilha, da alegria à tristeza. E também o azar, segundo a regra não escrita que dita que quando alguém rouba uns sapatos, quem fica descalço pode roubar outro par. A construção de Santa Sofia levou cerca de seis anos e exigiu mais de dez mil homens. São quase 1500 anos de história que vemos agora por dentro. Conhecemos Santa Sofia pelo balcão superior. Os guias lutam para se fazerem ouvir. Competem uns com os outros e com as orações que estão a acontecer no piso térreo. Os homens rezam no centro da mesquita. As poucas mulheres presentes reúnem-se à margem do centro, no espaço que lhes está reservado. Exactamente como na Mesquita Azul, onde agora entramos. O seu verdadeiro nome é Mesquita do Sultão Ahmed, em honra de Ahmed I, que a mandou construir há 500 anos. Tem mais de dois mil azulejos e seis minaretes, em vez dos habituais quatro. De pés descalços e cabeça coberta, no caso das mulheres, encontramos uma mesquita luminosa e simultaneamente imensa e aconchegante. A calma que emana não se deixa vencer pelo corrupio de turistas como nós. Mais de dez quilómetros a pé depois, terminamos o dia no Grande Bazar — o mercado mais antigo da Turquia, com 450 anos e quase 3500 lojas. O mercado tem mais de vinte entradas. É organizado em esquadria e cada loja é um pequeno quadradinho, colorido, luminoso e recheado de alto a baixo. As cantigas dos vendedores e os regateios são a banda sonora deste espaço. Vêem-se sobretudo jóias, tapetes, candeeiros e iguarias turcas. As lojas parecem réplicas umas das outras. As ruas mais estreitas encolhem com os lojistas todos à porta, alguns de cigarro pendurado na boca, a conversar e a seduzir quem passa. Nas redondezas do mercado, multiplicam-se vendedores ambulantes igualmente persistentes.
Estamos no Mercado das Especiarias. Bekir leva-nos à loja Ayfer Kaur, cujo dono nos dá a provar alguns produtos e convida-nos a cheirar uma infusão de cristais de mentol, o que nos impede temporariamente de reconhecer outros aromas. Desimpedidas as vias respiratórias, cheira-se melhor o mercado: uma mistura de especiarias com doces, café e tabaco. Mercado adentro, o quadro repete-se: dentro de várias lojas há grupos de homens sentados à mesa a tomarem o pequeno-almoço. Um grupo posa para a fotografia e convida-nos a juntarmo-nos a eles, oferecendo pão e café turco. A oferta do Mercado das Especiarias excede o seu nome. Nas 85 lojas cabe a mesma variedade de produtos que o Grande Bazar oferece. Perto de uma das entradas principais do mercado, repousa a Mesquita Yeni. Entre a mesquita e o mercado, duas pequenas bancas vendem sementes para atirar aos pombos. Cruzando a entrada da mesquita, encontra-se um silêncio que nos distancia imediatamente do mercado. Dois universos distintos separados por poucos passos. Da mesquita abrem-se portas para o Bósforo, onde nos espera um cruzeiro. Partimos do Corno de Ouro, onde ambos os lados são europeus. Navegamos correntes do mar Mármara e do mar Negro. Bekir conta-nos que há uma expressão turca que significa "vamos apanhar ar do Bósforo" e percebemos rapidamente o ímpeto. No lado asiático, onde vivem cerca de cinco milhões de pessoas — os chamados “turco brancos” —, encontra-se mais tranquilidade, mais floresta e menos turistas. No lado europeu, vivem 15 milhões. Despedimo-nos de Istambul a namorá-la do mar e rumamos a Ancara, a capital. Esperam-nos mais de 400 quilómetros. À medida que avançamos pelo interior, o calor aumenta. A paisagem que atravessamos é acidentada e verde, com zonas que podiam ser a nossa Beira Alta. Durante a viagem, o guia convida-nos a praticar turco: merhaba ou selam para dizer olá. Günaydin para dizer bom dia e teşekkürler é obrigado. Chegamos a Ancara. Estamos a sul de Istambul e no centro da Anatólia. A população da cidade ronda os oito milhões. É uma cidade muito limpa, mais barata, tranquila e segura que Istambul.
Acordamos na capital e visitamos o Museu das Civilizações da Anatólia, que nasceu da vontade de Mustafa Kemal Atatürk dedicar um museu à civilização hitita. Abriu em 1921 e reúne obras históricas de várias cidades turcas. Daqui partimos precisamente para o Mausoléu de Atatürk, o fundador da república turca e “pai dos turcos”. Há dois símbolos que se repetem pela Turquia fora: a bandeira turca e este homem. Turquia. 1600 quilómetros depois Bekir conta que os turcos “devem muito a Atatürk” e é possível testemunhar esse sentimento de dívida e veneração. Além do mausoléu, onde está o túmulo de Atatürk, este complexo é composto também pela praça da cerimónia e o caminho dos leões. Aqui presta-se homenagem ao pai dos turcos e ao seu legado: democracia, liberdade e educação. Não é por acaso que aqui encontramos vários estudantes a atirarem cartolas ao ar em sessões fotográficas. De hora a hora, a multidão junta-se, atenta e de câmara em punho, para assistir ao render da guarda — uma exibição longa cujo ritmo é marcado por gritos secos. No final, um longo aplauso.
A caminho da Capadócia, almoçamos à beira de Tuz Gölu, um lago salgado onde Ancara, Aksaray e Konya se encontram. É um ponto de paragem para flamingos, mas não temos a sorte de os ver. O lago de tom rosa tem quase 80 quilómetros de comprimento e a sua água promete curar quase tudo: rugas, acne, manchas, dores musculares, varizes e até a pele mais dura. No areal de sal esperam-nos 30 graus e não há sombra perto da linha de água. Mas a vontade de mergulhar de cabeça evapora-se assim que os pés tocam o sal. Aqui caminha-se com cuidado e testa franzida. Quem se atreve à travessia de pé descalço garante que os flocos de sal parecem farpas nos pés e ardem à medida que secam sobre a pele. As crianças são as que mais se manifestam, enquanto os pais tentam banhá-las, rabujam. Talvez o lago salgado só não cure as birras. Subindo o areal, o choro fica para trás, mas a água salgada vai, em garrafas, pendurada nas mãos dos que querem levar um pouco do milagre com eles. A concentração de sal na água inscreve-se na pele, nos cabelos e nas roupas de quem se atreve a banhar-se, mesmo que timidamente. À medida que a água seca, são bem visíveis manchas brancas quase opacas. Exactamente como na roupa e na pele de Halil e Ayla, imune à birra. Os dois brincam no lago e posam voluntariamente para uma fotografia. Halil aproxima-se com a pequena Ayla ao colo, ambos sorridentes. Eda junta-se a nós, mas nenhum deles fala inglês e não temos Internet que nos ajude. Por gestos, entendemos-nos o suficiente para ficar com o e-mail de Halil.
As formações rochosas que pintam a paisagem da Capadócia chamam-se chaminés de fada. A erosão esculpiu as formações de lava e deu-lhes uma forma cónica. São cicatrizes deixadas pelo monte Argeu, um vulcão extinto. Estamos em Göreme. Enquanto cavalos e cães procuram sombra, os mais corajosos trepam os montes de onde se erguem as chaminés. Daqui seguimos para o museu a céu aberto de Göreme, um complexo monástico esculpido nas rochas. Entre igrejas com frescos e espaços de convívio e descanso, o complexo pede cerca de duas horas para ser visitado. É como uma cidade subterrânea que se ergueu do chão para se esconder dentro dos montes vulcânicos. Perto de Göreme, vemos o castelo de Uçhisar, também esculpido em rocha vulcânica. Paramos de seguida no Vale dos Pombos. Presume-se que os pombos turcos são mais felizes que os portugueses. São, pelo menos, mais mimados. Aqui também se oferece comida aos pombos, que sobrevoam e forram o vale, fazendo jus ao nome. Pausa na paisagem para regressar ao comércio. Quem acusa os turcos de preguiça nunca terá conhecido os seus comerciantes. Visitamos uma loja de tapetes onde uma artesã exemplifica diferentes tipos de nós, à voz do dono da loja, que nos recebe com um português do Brasil impecável. Depois da demonstração, entramos numa sala ampla com sofás corridos em U, onde somos convidados a sentar-nos. Começam por nos oferecer uma bebida: chá, café turco, água ou raki — bebida de anis. À voz do mestre-de-cerimónias e numa performance seríssima, dois homens estendem mais de trinta tapetes de diferentes materiais. Pedem-nos que prestemos atenção ao som dos tapetes. O dramatismo da apresentação arranca alguns risos à audiência, assim como o momento em que o dono da loja pergunta se já vimos um tapete voador. Bem, agora já. Um dos homens fez voar um tapete circular, truque pelo qual exigiu aplausos. Terminada a demonstração, estão entretanto dez homens nesta sala, que abordam o grupo na esperança de fazer negócio. O dia termina com um espectáculo de danças folclóricas turcas, num bar que parece escavado em rocha, como uma cidade subterrânea moderna. Entre actuações, os bailarinos libertam a pista para os turistas e a música tradicional turca empresta o lugar ao pop e ao reggaeton. Um dos bailarinos fecha a noite com uma dança semelhante à dos dervixes, hipnotizante.
Passa pouco das quatro da manhã quando seguimos, numa carrinha, até ao lugar onde levantaremos os pés do chão. Galgamos terreno acidentado sob uma noite cerrada até lá. A madrugada fresca é vencida pelo calor que em breve fará voar o balão de ar quente. Assistimos ao final da preparação do voo. Com o cesto ainda deitado e devidamente amarrado, o piloto injecta gás no interior do enorme balão que vai enchendo, enquanto atrás da montanha rompe tímida a bela aurora, sob a lua ainda bordada no céu.
Neste cesto compartimentado cabem trinta pessoas: 28 passageiros, o piloto e um assistente. Em terra ficam pelo menos cinco homens, que apoiam a descolagem e a aterragem. A subida para o balão não é tão graciosa como o voo, mas um pequeno escadote ajuda os passageiros mais baixos a preservar alguma dignidade. Depois de uma breve explicação da posição que cada passageiro deve tomar no momento da aterragem — agachados, agarrados às cordas no interior do cesto e inclinados para trás —, está na hora de o vime largar o chão. Avistam-se dois ou três balões no ar quando chega a nossa vez de voar. Descolamos junto a uma cordilheira de chaminés de fada, à qual se segue um vale. Parecem ainda poucos, mas à medida que cruzamos este corredor de cicatrizes vulcânicas, do vale que lhe segue brotam dezenas de balões. No céu, enfim, o postal que todos conhecíamos, mas não ousámos imaginar tão belo. O tempo, como o balão, parece suspenso. Apesar de serem tantos balões com tanta gente neles pendurada, o sol de hoje parece nascer só para os nossos olhos. O piloto anuncia que não treparemos mais céu por agora, o nascer do sol pede que paremos para o contemplar. O balão vai girando, o que permite que todos os passageiros tenham uma visão 360º e possam namorar por inteiro o nascer do sol nos vales da Capadócia. Embevecidos, retomamos a escalada céu fora. Estamos a 700 metros de altitude. Umas baforadas depois, ascendemos aos 1000. Pode parecer aterrador para quem tenha vertigens, mas os olhos pendem pouco para o chão quando à nossa frente se pinta um amanhecer comovente. No céu da Capadócia, até as vertigens olham para cima. O cesto é estável e a vista tão deliciosa que parece engordar os olhos. Além das baforadas de gás, ouve-se pouco mais que o absoluto encanto de quem voa no mesmo cesto. Ofereceram uma merenda antes da subida, mas no céu da Capadócia só houve tempo para dar de comer aos olhos. Durante cerca de uma hora de voo — que pareceu durar apenas cinco minutos, mas neles coube uma eternidade indelével — a urgência era só uma: devorar o que víamos sem perder um segundo. Podendo não piscar os olhos, desconfio que nunca o teríamos feito. De volta ao solo, chegamos a Konya, cidade santa, capital da beterraba e das fábricas de chocolate. As mulheres do grupo voltam a cobrir a cabeça para visitar o Museu Mevlana. Aqui jaz Rumi, “o maior místico e poeta sufi” da língua persa, cuja obra influenciou o pensamento e a literatura muçulmana. “A filosofia de Mevlana é difícil de explicar e muito profunda”, conta Bekir. Assenta em três valores: tolerância, paciência e amor — o caminho para alcançar o amor de Deus. Os seguidores de Rumi são dervixes — os mesmos que dançam. Vestidos de branco e com um chapéu, rodopiam sobre si para a esquerda, o lado do coração, para no fim alcançarem Deus. Partimos agora para Pamukkale, que desbravaremos amanhã.
Começamos às sete da manhã, pela fresca possível — sensação térmica de 40 graus. Pamukkale — “castelo de algodão”, em português — consiste em duas partes: os travertinos à esquerda e a cidade antiga de Hierápolis à direita. Ambos Património Mundial da UNESCO. Travertinos são uma formação sedimentar calcária que formam um manto de rochas brancas. Em Pamukkale, as cascatas calcificadas esculpiram pequenas piscinas termais nesse manto branco, habitualmente cheias de água inacreditavelmente turquesa — uma paisagem surreal. Esperávamos ver mais água, mas, mesmo vazias, as conchas calcárias que pintam de branco a encosta têm encanto. Do outro lado, Hierápolis, “o sítio onde se ia morrer”, descreve Bekir. Esta cidade termal foi fundada por gregos e, séculos mais tarde, cedida a romanos. Entre os vestígios do período greco-romano nesta cidade encontramos ruínas de um teatro romano, uma necrópole, banhos, templos e outros monumentos. De Pamukkale vamos para Éfeso, uma antiga cidade greco-romana. Visitamos a casa que muitos acreditam ter sido o lar da Virgem Maria nos seus últimos anos. Esta casa apareceu em visões à freira Anna Catarina Emmrich. Desde então, mesmo não existindo evidências de que a Virgem Maria viveu aqui, é um concorrido destino de peregrinação. À saída da pequena casa, há fontes de água dita benta e um mural onde os peregrinos deixam as suas preces escritas.
Seguimos para as ruínas da antiga cidade de Éfeso, uma longa e quente caminhada onde se disputa sombra e as solas dos sapatos ameaçam derreter, se pararmos tempo suficiente. Aqui resistem as ruínas de Odeon, o templo de Adriano, a fonte de Trajano, o portão de Hércules e a biblioteca de Celso. O tempo desafia a inteireza, mas nunca a imponência destes marcos históricos. A última paragem é Izmir, a pérola do Egeu e o princípio do regresso. Bekir recomenda Istambul todo o ano, Capadócia e sul da Turquia de Abril a Outubro. Depois de seis dias pela Turquia fora, resumiria: Turquia sempre.
A Fugas viajou a convite de PTL Tours